astromélia

Florianópolis, SC

~amar é...

Fotos: Ângela Reck

Texto: Noah Ricardo.


"amar é sentir um abraço que foi dado em outra vida". - Noah.


CARTA DE NOAH PARA GABI.


Hoje, dia 13­ de abril de 2021, faz 1 ano que nos beijamos pela primeira vez. Nossas vidas tinham um ritmo e um tom totalmente diferente. Estar com você mudou tudo, aprendi muitas coisas sobre eu mesmo e o mundo. Estarmos juntos é uma jornada que me revira do avesso e me faz entender partes de mim que só vieram à tona depois daquele dia 13. Narrarei essa caminhada, estava meio tímido, na minha mente pareceu algo místico e que transcende o tempo e o espaço: falar de amor é falar de algo que está além da nossa compreensão.


Toda mulher é uma bruxa, e Gabriela mostra sua magia em seus detalhes, principalmente na sua coragem para lidar com o desconhecido. Passamos pela situação de que sua mãe não aceitou que ela se relacionasse comigo, pois sou um homem trans. Por mais que Gabi ache importante os laços familiares, não queria abrir mão das descobertas que nosso amor proporcionavam a ela. Ela previa esse problema, e se entregou de corpo e alma para enfrentar, tentando lidar com os seus sentimentos e com os sentimentos de todos. Como boa pisciana, queimou palosanto dentro de casa para limpar as energias, chorou de tristeza e de raiva, mas deixou sua intuição falar mais alto e foi buscando aliados. Assim, conhecemos a Sabrina, uma terapeuta holística que nos auxiliou no sentido energético e nos mostrou que tínhamos que ter paciência. Ali, vi a capacidade de resiliência de Gabi: foi exaustivo, ela tinha que se desdobrar para estar com ela mesma, comigo e com a mãe dela. Deu certo, porque ela foi honesta e paciente com seus sentimentos, teve a sabedoria do tempo. Muitas literaturas dizem que as mulheres são crianças, adolescentes, adultas e anciãs ao mesmo tempo. Esses arquétipos são baseados em seu ciclo menstrual e as fases da lua. Nesse momento em que se entristecia e buscava força dentro de si, percebi que estava sendo guiada por sua anciã interior, sua versão mais determinada e que transcende a dor em sabedoria. A anciã é como uma arvore muito velha que tem raízes profundas e invisíveis e dali estrai sua verdadeira força e essa anciã esteve aqui por muitos dias. Os óvulos de Gabi não amadureciam para um novo ciclo menstrual. A anciã só iria descansar quando sua missão se encerrasse. Com o tempo as coisas foram tomando uma dimensão mais branda, a mãe dela voltou a falar com ela normalmente e tudo foi ficando mais tranquilo. Quando a anciã está aqui, os ares de Gabi mudam: ela prende os cabelos, usa sais longas até o pé, sua pele fica mas seca, sua paciência mais curta. A anciã vem para arrumar as coisas, ela parece estar sempre dizendo:


 “para quê dar importância para besteiras?” 


Quando a poeira baixou, a anciã cumpriu sua missão e deu espaço para a criança. 

A criança de Gabi é tímida, quieta e um pouco amedrontada. Quando percebi que a criança estava presente, tentei trazer ela para a magia da dança, crianças gostam de movimentos e de aprender coisas novas. As plantas antes de serem muito grandes, são sementes que rompem a casca antes de crescer. A criança de Gabi fez força para sair daquela atmosfera de medo e se permitir dançar de forma espontânea e livre, bem diferente das minhas marcações de tempo e espaço na dança. Quando vimos, estávamos na harmonia de movimentos não planejados. A criança me mostrou que todas as coisas podem ser modificadas com leveza, e que não é preciso levar tudo ao pé da letra, temos que deixar espaço para ser espontâneo.


A adolescente da Gabi é minha melhor amiga! 

Ela é uma pessoa que tem um humor ácido e senso crítico, temos diálogos profundos sobre a sociedade e o indivíduo. A adolescente é uma parte revoltada, indignada e que quer provocar mudanças, um pouco parecida com a anciã, mas a anciã atua num sentido mais energético, enquanto a adolescente vem problematizar as questões sociais e a louca na pia. Ela é debochada e se expressa muito bem, sabe colocar numa frase de poucas palavras sua indignação diante de preconceito e desigualdade. Ela faz pensar, e veio no momento em que a poeira baixou para dizer coisas que precisam ser ditas.


A mulher adulta que existe em Gabriela é como uma fruta madura que desperta o desejo da mordida. 

Sua pele fica macia e com uma aparência saborosa. Seu cabelo se movimenta de forma convidativa, e qualquer roupa que veste lhe cai como um manto que desperta meu desejos. A mulher adulta é a rainha que sabe os momentos que deve ser doce ou furiosa, delicada ou sucinta, gritar ou silenciar. Admiro essa mulher e sou feliz de tê-la conhecido. Ela parece que tem todas as estações no seu corpo, todas as verdades em suas palavras e as vezes nos comunicamos por telepatia. Ela quem diz o momento certo de se aproximar. A rainha de Gabriela desperta o amante que há em mim. Quando nos entrelaçamos, proando o prazer nos leva para um frenesi atemporal. 


Gabi consegue ser todas as gerações ao mesmo tempo, no meu ver, sua personalidade não é uma coisa linear, contínua e performática, existe algo de ancestral, visceral, profundo. Se nela as coisas misturam-se e se renovam muito rápido, em mim é tudo linear e lento. Quando começa o ano se apresenta um desafio e nesse desafio percebo qual dos meus arquétipos será predominante. No começo mudei de trabalho e de casa, mudei toda minha rotina e me vi longe de pessoas que estavam comigo todos os dias. Me via aborrecido e cansado de ter que me adaptar nas coisas novas. No ano anterior, 2020, foi o ano que o arquétipo do guerreiro foi mais presente em mim, um ano cheio de desafios, no qual me sentia cheio de determinação em superá-los, mas 2021 não era só questão de determinação e coragem, as coisas que senti falta não eram realidades materiais, era algo abstrato. Estar em lugares diferentes me faz sentir que meu EU mais abstrato não tinha espaço para existir. Foi quando percebi que o arquétipo do mago precisava vir. Tentei lembrar de outros momentos da minha vida, me deparei com o mago e os traços mais marcantes dessa minha personalidade. O mago observa, percebe e aprende com a parte mais profunda da mente, ele sabe o que não é dito em palavras e sabe o momento certo de dar clareza aos sentimentos ou pensamentos obscuros. Pensar em mim e no mundo a minha volta como um guerreiro não me ajudaria naquele momento, poderia ficar estressado, apático, com as limitações alheias e minhas. O mago é calmo, observador e se permite viajar em todas as possibilidades abstratas, procurando a melhor forma de lidar com situações difíceis, adentrando nos labirintos da minha mente em segurança para transcender dores e traumas. Com esse arquétipo influenciando minha jornada, passei a me sentir agredido por todas as coisas boas que faziam parte da minha vida, e eu não percebia por estar ocupado demais olhando o que precisava resolver. Comecei a prestar atenção nas pessoas que estavam a minha volta e notei que elas precisavam de atenção em algumas particularidades que eu podia ajudar. Essas coisas eram materiais, energéticas e muito profundas. Quando Gabi estava muito triste por conta da família dela, fiz massagens em suas pernas, ouvimos músicas juntos e procuramos criar um clima amistoso dentro de casa. Ela percebeu que não ter espaço me aborrecia, então fez uma mesa com cadeira onde eu pude colocar meus livros e estudar. Aos poucos, pessoas que de alguma forma poderiam contribuir para nossa jornada, foram aparecendo e agindo de uma forma que nos tornaram mais leves. Com o tempo, o mago criou uma rede de comunicação e pude me sentir conectado com minha ancestralidade, com as possibilidades que o universo poderia me dar. Eu e minha companheira passamos a prestar atenção na nossa comunicação e notamos que além da nossa conexão racional, existia uma linha que era intuitiva e viajamos por essas linhas quando precisamos de respostas. 


Comecei a conversar com outras pessoas se já haviam tido visões durante o orgasmo, isso estava recorrente entre eu e Gabi. 

Outras pessoas relataram que também se tele transportavam para outros lugares e abriu para longas conversas sobre essa possibilidade do sexo. Às vezes, vejo aspirais de laranja ou vermelho e essas aspirais transformam-se em portais, me vejo em um lugar muito gelado, tenho outro corpo e outras roupas. A Gabi fala que sempre vê uma escada, no final dessa escada há um piano e uma mulher com roupas de época. 


Já me vi um homem que veste pele de urso. 

Gabi já viu ficar tudo lilás. 


Não temos uma resposta cientifica para essa experiência, mas posso dizer que eu e a Gabi nos comunicamos sem palavras. É como se nossas energias viajassem para outras dimensões além do espaço tempo, além do corpo, do explicável. Apesar de todas as situações que vivemos nesses doze meses, sempre nos tratamos com leveza, construímos um companheirismo honesto, nos encorajamos, amparamos, alertamos, rimos... apenas sentindo de maneira profunda.


Não amamos apenas a pele que o dinheiro pode comprar, presentes e conforto, 

amamos em outras dimensões o que os olhos não veem, a pele arrepia e o coração se aquece.